quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Joaquina

Rodávamos, eu e um amigo, pelas estreitas avenidas da Ilha - íamos para a Lagoa em direção aos barzinhos. Era sábado a noite, clima agradável. Não era verão mas ainda se sentia um clima de festa. Gente na rua, bares lotados. Se bem me lembro era o começo do ano letivo, na estação em que a Fluir apelidou de 'Outono Atômico' naquele ano. Altas ondas quebravam por todo Brasil, ondulações maciças de quadrante sul e sudeste davam as caras frequentemente nesses três meses - inclusive novas lajes poderosas eram descobertas no Rio de Janeiro e no sul de Santa Catarina.

Como o povo da terra de Floriano Peixoto é totalmente consciente que vive em um dos lugares mais belos do mundo e com um lazer de altíssimo nível, culturalmente a noitada começa cedo e acaba cedo. Tínhamos surfado o dia todo, o corpo estava esgotado; no final das contas, só fomos mesmo dar as caras no bairro boêmio. O clima era de dar um rolê, uma banda por aqui e ali, e vazar. Estava passando apenas o final de semana na antiga Desterro e, afinal, domingo também é dia de surf. Como já estávamos pela região da Lagoa da Conceição, decidimos rumar para a Praia da Joaquina e curtir um pouco a beira da praia.

Meu amigo dirigia o Fiesta vermelho enquanto eu tentava relaxar um pouco os músculos no acento do carona. Era um carro usado, em bom estado, com altura boa para o padrão da terrível da pavimentação florinapolitana. Assim que passamos a Avenida Rendeiras, na beira da lagoa, começamos a dobrar em direção à pequena estrada que leva para a Joaquina, entretanto já não falavamos descontraidamente - estávamos os dois calados, quase que parando de conversar. Ambos sentiam o clima pesado. Parecia que a noite, muito escura, sufocava. Tentamos relaxar o clima, sem muito sucesso; apenas trocávamos algumas frases sobre o surf do dia.

Um pouco antes de chegar no estacionamento, a uns 200 metros da praia, meu amigo sentiu algo de estranho no carro. Já dirigia a mais tempo que ele, tentei analisar as rotações, o barulho do motor, os ruídos, enfim, não notei nada de diferente. Todavia, ele que estava dirigindo e ele havia sentido algo diferente, logo na subida da lomba em direção a praia. Não demos bola, se o carro estava rodando e nos levando aonde queríamos, beleza.
Somente no dia seguinte que descobrimos que um cabo da bateria tinha parado de funcionar, não me lembro exatamente o que estava estragado, e o carro não dava mais partida. Após meia-hora de mecânica conseguimos faze-lo funcionar para nos levar pro Campeche.

Estacionamos, saímos do carro e nos sentamos num banco, contemplando as ondas noturnas quebrando na Pedra do Careca - iluminadas por um intenso refletor. Perto das ondas, parecia que estávamos rodeados por uma energia intensa. Um tipo de bruma pairava no ar, como uma neblina invisível - densa e pegajosa. Logo chegaram dois caras para fumar um na beira do mar; motoqueiros, com os capacetes na mão. Se passaram alguns minutos e, num clima um pouco mais ameno, avistamos um vira-lata na areia. O cusco fuçava um pouco na areia, tranquilo no seu habitat natural.

Comentei com meu parceiro da conversa que tive com outros dois amigos. Era um fim de trip numa outra praia, bem distante dali. Comíamos um xis antes de partir de volta pra casa. A conversa foi pautada pela reflexão acerca de espiritismo, energias, aparições, vida sobrenatural e superstições. Um dos itens que me marcou foi um papo sobre forças que habitam determinadas formas. Guardei na minha cabeça a frase de um desses amigos: o cachorro é guardião, quando se vê um cão num lugar repleto de energia e tensão como uma praia, pode ter certeza que ele não está ali por acaso - está investido como detentor do reino.

Após esse comentário, vimos chegar uma senhora mulata de seus, talvez, 40 anos. Bem vestida, como se tivesse saído de uma festa a pouco tempo. Com as sandálias na mão e um largo sorriso no rosto, olhei rapidamente e não dei bola, só achei um pouco estranho. Assim que ela passou por nós, em direção à areia, notamos que alguma coisa estava errada. Os dois outros rapazes também olharam com mais atenção, chegando a rir e a fazer algumas piadinhas. Começamos a vê-la perder o controle sobre si mesma, como se estivesse possuída. Fazia um tipo de requebrado no caminhar, mostrava claramente a falta de fluidez nos movimentos típica de alguém que está em transe. Ela havia 'baixado o santo'. Esse processo demorou seus 15 ou 20 minutos, de forma que a senhora caminhava da areia até o mar revolto, ficando com água até as coxas - e em nenhum momento fez menção de parar com a introspecção profunda, e sequer havia olhado para trás. Era como se não tomasse conhecimento do seu entorno, apenas acatava ordens das suas vibrações internas. Além dos quatro homens sentados nos bancos, o vira-lata também observava com atenção.

Para nós dois, a tensão havia transbordado, não estávamos nos sentindo a vontade. Logo decidimos ir embora. A sensação era de um leve transtorno. Era como se tivéssemos acabado de receber uma mensagem. Mesmo não tendo falado muito durante essa experiência, ou mesmo depois, tenho certeza que saímos de lá com a mesma lição. Aprendemos de um modo sublime e sutil algo que qualquer um que tenha uma ligação intrínseca com o mar deve saber e, sobretudo, cultuar: respeite o mar.

domingo, 14 de novembro de 2010

Barcelona

Barcelona. Depois de ver a Sagrada Família, ter perambulado pelo - no mínimo - peculiar centro histórico da cidade e, principalmente, de ter curtido uma bela caminhada até o Estádio Olímpico, sinto uma elevação de consciência para com o meu entorno - um tipo de oxigenação da alma que só sinto depois de uma viagem em que parto para casa de cabeça feita.
Já tinha ido pra Barcelona quando eu tinha uns 13 anos, e a volta à essa maravilhosa cidade foi recheada de flashbacks. Coisas que eu vi quando era muito mais novo com a minha família tive a oportunidade de reencontrar, por acaso, logo antes de ir embora. Inclusive tenho posto a prova a minha real vontade de continuar trilhando o Direito, mas acho que esse tipo de dúvida é das mais normais quando se faz uma viagem fora de sério pela Europa ou aonde for. O que importa é curtir, ler e escrever. A viagem foi absurdamente reflexiva, me diverti pra caralho - meus três amigos que me acompanharam são realmente bons companheiros de viagem, tudo foi muito layback, easy going.

Essa perspectiva de viajar aos 13 com a família e aos 20 com amigos estrangeiros foi legal. É impressionante como tanta coisa muda em tão pouco tempo. Sim, eu sei que isso é um clichê - e pouco me importa, tenho utilizado de tão bons e velhos clichês a minha volta que até comecei a gostar deles. É bom dizer do fundo do coração: 'estou amando como nunca amei'. Por mais batido que seja, se eu sinto isso, eu bato no peito. Foda-se.

Cinco dias antes de zarpar louco para a Espanha, tinha feito Bruxelas, Bruges e Amsterdã e - entre atrações como Van Gogh, Dalí, Gauguin e Maeneken Piss -, consegui, além de tomar cerveja trapista como um bezerro, fazer um tour cultural bastante razoável. Quem diria que uma cidadezinha de merda como Bruges (localizada mais precisamente no norte de Flandres, Bélgica - que inclusive possui surfshops com wetsuits grossíssimas para se fazer um surf no Mar do Norte) possuí uma coleção permanente de Salvador Dalí, com muitas obras exclusivas, inclusive esculturas? Aliar uma boa diversão com algo que me faça refletir me deixou com uma sensação de dever cumprido, uma simbiose de curtição com reflexão. Daquele jeito. E não posso esquecer de jeito nenhum as três cervejarias que visitamos, uma em cada cidade! Na ordem de satisfação de admiração, aqui vai: Cantillon (última cervejaria da verdadeira Lambic Beer, de Bruxelas, maturada por até três anos), Brugse Zot (última cervejaria do centro medieval de Bruges, altamente premiada) e, como não poderia faltar, mas muito inferior às artesanais, mas ainda com seus méritos, a fábrica da Heineken, em plena Amsterdã.

Por mais que eu queira continuar com as reflexões pós viagem, vou retomar a Saga Europa amanhã, as 'fáceis' conjugações de verbos em francês me chamam. Tchau!

Luis Rosenfield

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Escrever

Fiz o blog antes de vir para a França, tendo feito um post somente, e acabei por esquecer do desafio de escrever diariamente - ou pelo menos de criar uma espécie de rotina de escritura, hábito que tanto prezo.
Estou lendo um livro de um jornalista francês, Cyril Payen, chamado Laos, la guerre oubliée (Laos, a guerra esquecida). A fascinante expedição que esse cara empreendeu para cobrir uma matéria sobre um genocídio étnico que perdura até hoje - sob a égide do abandono total da comunidade internacional - me atingiu em um nervo e decidi que deveria voltar a escrever, de uma vez por todas.
Acabei por lembrar das sábias palavras do mestre Ray Bradbury, que escrevia sem parar em sua garagem - compondo uma vasta obra de ficção científica -, somente sendo perturbado por suas filhas pequenas que vinham o incomodar para que brincasse um pouco com elas. Talvez ainda mais influente seja Gabriel García Marques, que afirmou que só conseguiu escrever Cien años de soledad obrigando a si próprio a escrever pelo menos uma página diariamente.