Rodávamos, eu e um amigo, pelas estreitas avenidas da Ilha - íamos para a Lagoa em direção aos barzinhos. Era sábado a noite, clima agradável. Não era verão mas ainda se sentia um clima de festa. Gente na rua, bares lotados. Se bem me lembro era o começo do ano letivo, na estação em que a Fluir apelidou de 'Outono Atômico' naquele ano. Altas ondas quebravam por todo Brasil, ondulações maciças de quadrante sul e sudeste davam as caras frequentemente nesses três meses - inclusive novas lajes poderosas eram descobertas no Rio de Janeiro e no sul de Santa Catarina.
Como o povo da terra de Floriano Peixoto é totalmente consciente que vive em um dos lugares mais belos do mundo e com um lazer de altíssimo nível, culturalmente a noitada começa cedo e acaba cedo. Tínhamos surfado o dia todo, o corpo estava esgotado; no final das contas, só fomos mesmo dar as caras no bairro boêmio. O clima era de dar um rolê, uma banda por aqui e ali, e vazar. Estava passando apenas o final de semana na antiga Desterro e, afinal, domingo também é dia de surf. Como já estávamos pela região da Lagoa da Conceição, decidimos rumar para a Praia da Joaquina e curtir um pouco a beira da praia.
Meu amigo dirigia o Fiesta vermelho enquanto eu tentava relaxar um pouco os músculos no acento do carona. Era um carro usado, em bom estado, com altura boa para o padrão da terrível da pavimentação florinapolitana. Assim que passamos a Avenida Rendeiras, na beira da lagoa, começamos a dobrar em direção à pequena estrada que leva para a Joaquina, entretanto já não falavamos descontraidamente - estávamos os dois calados, quase que parando de conversar. Ambos sentiam o clima pesado. Parecia que a noite, muito escura, sufocava. Tentamos relaxar o clima, sem muito sucesso; apenas trocávamos algumas frases sobre o surf do dia.
Um pouco antes de chegar no estacionamento, a uns 200 metros da praia, meu amigo sentiu algo de estranho no carro. Já dirigia a mais tempo que ele, tentei analisar as rotações, o barulho do motor, os ruídos, enfim, não notei nada de diferente. Todavia, ele que estava dirigindo e ele havia sentido algo diferente, logo na subida da lomba em direção a praia. Não demos bola, se o carro estava rodando e nos levando aonde queríamos, beleza.
Somente no dia seguinte que descobrimos que um cabo da bateria tinha parado de funcionar, não me lembro exatamente o que estava estragado, e o carro não dava mais partida. Após meia-hora de mecânica conseguimos faze-lo funcionar para nos levar pro Campeche.
Estacionamos, saímos do carro e nos sentamos num banco, contemplando as ondas noturnas quebrando na Pedra do Careca - iluminadas por um intenso refletor. Perto das ondas, parecia que estávamos rodeados por uma energia intensa. Um tipo de bruma pairava no ar, como uma neblina invisível - densa e pegajosa. Logo chegaram dois caras para fumar um na beira do mar; motoqueiros, com os capacetes na mão. Se passaram alguns minutos e, num clima um pouco mais ameno, avistamos um vira-lata na areia. O cusco fuçava um pouco na areia, tranquilo no seu habitat natural.
Comentei com meu parceiro da conversa que tive com outros dois amigos. Era um fim de trip numa outra praia, bem distante dali. Comíamos um xis antes de partir de volta pra casa. A conversa foi pautada pela reflexão acerca de espiritismo, energias, aparições, vida sobrenatural e superstições. Um dos itens que me marcou foi um papo sobre forças que habitam determinadas formas. Guardei na minha cabeça a frase de um desses amigos: o cachorro é guardião, quando se vê um cão num lugar repleto de energia e tensão como uma praia, pode ter certeza que ele não está ali por acaso - está investido como detentor do reino.
Após esse comentário, vimos chegar uma senhora mulata de seus, talvez, 40 anos. Bem vestida, como se tivesse saído de uma festa a pouco tempo. Com as sandálias na mão e um largo sorriso no rosto, olhei rapidamente e não dei bola, só achei um pouco estranho. Assim que ela passou por nós, em direção à areia, notamos que alguma coisa estava errada. Os dois outros rapazes também olharam com mais atenção, chegando a rir e a fazer algumas piadinhas. Começamos a vê-la perder o controle sobre si mesma, como se estivesse possuída. Fazia um tipo de requebrado no caminhar, mostrava claramente a falta de fluidez nos movimentos típica de alguém que está em transe. Ela havia 'baixado o santo'. Esse processo demorou seus 15 ou 20 minutos, de forma que a senhora caminhava da areia até o mar revolto, ficando com água até as coxas - e em nenhum momento fez menção de parar com a introspecção profunda, e sequer havia olhado para trás. Era como se não tomasse conhecimento do seu entorno, apenas acatava ordens das suas vibrações internas. Além dos quatro homens sentados nos bancos, o vira-lata também observava com atenção.
Para nós dois, a tensão havia transbordado, não estávamos nos sentindo a vontade. Logo decidimos ir embora. A sensação era de um leve transtorno. Era como se tivéssemos acabado de receber uma mensagem. Mesmo não tendo falado muito durante essa experiência, ou mesmo depois, tenho certeza que saímos de lá com a mesma lição. Aprendemos de um modo sublime e sutil algo que qualquer um que tenha uma ligação intrínseca com o mar deve saber e, sobretudo, cultuar: respeite o mar.
Muito bem escrito Lu! Gostei do blog ;)
ResponderExcluirRafa