terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Strauss

Tristes trópicos (Claude Lévi-Strauss) até hoje mantêm uma vertiginosa lucidez no que tange a situação brasileira - e da América latina, de um modo geral - no tempo e no espaço, na sua cultura e nos seus eternos problemas. Incríveis são histórias que o mestre conta sobre suas viagens Brasil adentro, expedições estas feitas no lombo de boi, por infinitos meses nas terras (quase) desconhecidas da parte norte do Mato Grosso em direção à Rondônia.

Em busca de sair do ambiente pesado da burguesia intelectual parisiense, o autor começa cada vez mais a se distanciar - e dissociar - de sua 'civilização natal'. Ao mesmo tempo que solidifica essa convicção de espiritualmente não se sentir parte da burguesia francesa, o conhecimento cada vez mais apurado sobre o homem indígena não lhe desvela um reencontro com a paz de espírito: após andanças no centro-oeste do país, revela que encontrou o homem no seu estado mais simples, mas ainda com todos as características de um homem político, com cultura, com suas intrigas, guerras, hierarquias e normas...

A premissa da obra é sobre o impacto avassalador do Ocidente para com sociedades em fases de crescimento e maturação distintas; choque esse muitas vezes fatal contra as populações locais que, quando não eram exterminadas, se viam dizimadas por doenças 'brancas': cólera, sífilis, tuberculose...

Sob forma de impressões e reflexões sobre os mais diversos temas, o livro passa pelos olhos do leitor como um mosaico da vida de Lévi-Strauss - uma experiência brasileira que o marcou e definiu suas convicções para toda a vida. Enriquecedoras, para dizer o mínimo, são as considerações e impressões de um antropólogo, judeu francês, sobre São Paulo, Rio de Janeiro, Santos, Bahia, Goiaz (sim, com um "z") e outras regiões do país em períodos remotos. Aliando precisas impressões sobre as metrópoles em construção, somos introduzidos à grandes contrastes quando descreve suas expedições para as duras terras do sertão do centro do país, em busca de tribos pouco estudadas: Bororos, Caduveo, Mbaya, Nambkywara.

Suas descrições de um Brasil que começa a se industrializar são de uma precisão e clareza enorme. Conta, por exemplo, a história do nascimento das estradas de ferro no Estado de São Paulo, financiadas por uma empresa britânica. Descreve o nascimento dos vilarejos nas bordas das vias férreas; na estação Arapongas, a quatro estações de São Paulo capital, distante cerca de 60 quilômetros, o vilarejo era composto por somente uma casa habitada por um francês ermitão: região esta que se transformaria numa das mais populosas da América Latina. Cerca de duas décadas depois, o vilarejo que representava apenas uma estação da recém construída estrada de ferro, já abrigava mais de dez mil pessoas.
Um dos relatos que me marcou, e com certeza um dos mais caricatos, foi bem no início das andanças de Strauss no Brasil, antes mesmo de ser convidado para lecionar na USP.

Nos anos 40, ao andar pelas ruas de Salvador fotografando o centro histórico, foi abordado por crianças negras que corriam ao seu lado. Pediam para o francês: "tira o retrato! tira o retrato!". É claro que Strauss tirou as fotos para agradar as humildes crianças, apesar de saber que estas crianças jamais veriam tais fotos. Logo depois, após caminhar cerca de cem metros, foi interpelado por dois inspetores da polícia civil, que lhe informaram que acabara de cometer um "ato hostil ao Brasil"; não tinha autorização para tirar tais fotos - de crianças negras da Bahia, com pés descalços, em pleno centro da cidade - pois poderia manchar a imagem do país na Europa - o grande acontecimento do momento era o auge da Segunda Guerra Mundial.

Fiquei muitos dias pensando nessa cena pitoresca (a começar por imaginar o 'naipe' de inspetores da polícia civil Baiana no começo dos anos 40). Strauss acabou detido - todavia, somente pernoitou na delegacia de polícia, sendo liberado no segundo dia: a embarcação que lhe levaria de volta para a Europa partiria na tarde do dia seguinte, então recebeu uma "colher de chá" da querida corporação policial, que lhe deixou partir - sem o material fotográfico.

A partir desse mosaico de reflexões sobre o país, o maior ensinamento absorvido foi o de estudar e aprender o que é, e o que se tornará, essa enorme nação. Refletindo muito sobre essa influência do Velho contra o Novo, o contexto da obra me levou a refletir sobre outros aspectos do Brasil atual; sobre como é possível para nós, um povo tão novo, desenvolver outras respostas para as problemáticas que muitos países desenvolvidos não conseguiram responder de forma satisfatória - ou como podemos continuar a errar para sempre na construção da democracia.

Se hoje em dia inúmeras partes do país ainda são inóspitas mesmo para nós, brasileiros dos anos 2000, ler esse livro é como entrar em um filme de aventura; a única diferença é que a proximidade com o conteúdo é única e, pelo menos para mim, é impossível deixar de se envolver com as viagens Brasil afora. Em minha mente viajo na vastidão imensa desse território, no infinito particular que esse país representa. É tão comum pensar em mochilar pela Europa e, realmente, quantos de nós realmente conhecem o Brasil?

Viver na Europa, no tão famoso e badalado Velho Mundo, me dá inspiração para entrar de cabeça nesse país maravilhoso. Ao contrário de muita gente que volta para Brasil falando que a Europa é o lugar onde tudo funciona e que o 'primeiro mundo' é a coisa mais linda, a cada dia que passa redescubro minha terra natal. Sou consciente de todos os benefícios de viver num país com uma vida cultural, de fato, viva; com suas invejáveis livrarias, com sua segurança, com seus museus incríveis: enfim, tudo aquilo que estamos cansados de ver absolutamente ausente no Brasil.

Apesar disso, não consigo deixar de sentir uma enorme atração pelas paisagens quase intocadas do Brasil, pelas lindas praias, pelo esplendor de nosso mar, pela simplicidade do nosso modo de ver o mundo: pelo 'belo caos' do dia-a-dia brasileiro, pela tranqüilidade de se viver em terras brasilis. Reconheço que o Brasilzão possui todos seus problemas, todavia cabe a nós mesmos darmos o exemplo de que país queremos viver e, ao mesmo tempo, cultuar e desfrutar do nosso próprio solo.

Viva o Brasil!

Um comentário:

  1. Antes de nos conhecermos, meu marido e eu vivemos um ano em lugares diferentes na Alemanha, em anos também distintos. Mas essa oportunidade de nos distanciarmos da pátria criou em nós o mesmo sentimento que tu relatas, de reconhecer os problemas, sim, mas também de aprender a valorizar o Brasil naquilo que ele merecer ser valorizado. Acho uma pena que ainda precisemos dessa saída, às vezes, para ver algo que, acredito, deveríamos sentir na casa própria. Mas não importa tanto, no fim. Mais importante é essa descoberta da própria identidade, que levamos conosco, seja na volta, seja em outras andanças. legal teu texto. Jorgia

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